segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Caso conjugal


Malvina era alta, branca, tinha olhos castanho-claros e cabelos pretos como a noite. Não possuía vícios além do vício da precaução: pensava que cuidado em excesso a privaria sempre de desgostos na vida, distúrbios da saúde, constrangimentos nas relações sociais.

Conhecera Benedito num lugar extremamente incomum, do qual não se lembrava mais e para o qual nunca havia dado qualquer importância. Chegou a hesitar inúmeras vezes antes de aceitar definitivamente o tímido pedido de casamento lhe feito pelo simples rapaz.

Benedito era pobre, baixinho e mal instruído. Um indivíduo sem lugar no mundo. Aprendera com a própria vida a julgar o certo e o errado, e a optar – segundo a conveniência – pela opção que lhe prometesse mais sucesso.

(Juntos, Benedito e Malvina renderiam a elaboração de romances, crônicas pomposas, verdadeiros contos que, ao contrário deste, fariam jus a beleza de suas histórias).

Possuíam personalidades que desobedeciam ao significado dos nomes que carregavam: Malvina, de má não tinha nada. Pelo contrário, só sabia fazer o bem, pensar o bem, querer o bem para os outros. Era capaz de mentir, assumir culpas de outras pessoas, render discussões até as ultimas conseqüências só para que um inocente não fosse condenado. Repugnava a injustiça. Jamais aceitara a desigualdade própria do mundo. Pensava sempre que, somando forças e conservando esperanças, seria possível mudar as coisas um dia.

Benedito já era um sujeito pronto para amaldiçoar a qualquer um que, distraidamente, lhe desse um pisão de pé na fila da padaria, ou lhe desse um esbarrão na calçada. Carregava um tipo particular de maldade consigo. Julgava as atitudes de todos aqueles que o rodeavam. Condenava pensamentos que fossem contrários ao seu conservadorismo. Era autoritário, metódico e, mesmo que inconscientemente, preconceituoso. Nem o pobre Fusca, um vira-lata amarelo de pequeno porte que Malvina havia trazido para casa depois de encontrá-lo ainda filhote, na rua, num dia de chuva, escapava de suas pragas:

- Vira-lata infeliz! Se tivesse consciência da insignificância da própria existência se enfiaria na frente de um caminhão em alta velocidade... E Fusca o olhava nos olhos, com um olhar de compreensão. Como alguém ouve e absorve o peso de cada palavra de maldição. E de certo era o que acontecia. Fusca compreendia, como é comum a todo cão entender, o que Benedito dizia.

A vida para o casal não era difícil. Malvina era funcionária pública efetivada. Conhecia sua repartição melhor do que a si mesma, melhor do que sua casa, melhor do que seu marido. Dos anos dedicados ao trabalho não esperava nenhum reconhecimento. Sabia que daquela sala cercada por quatro paredes de divisórias beges nada de melhoria para sua vida poderia surgir. No entanto, não se preocupava. Não corria riscos de ficar desempregada como grande parte das mulheres da mesma idade. Já não tinha ânimo algum para prestar outro concurso público para um órgão mais importante que lhe oferecesse um cargo melhor. Não pretendia ganhar mais porque a força de acomodação que vive impregnada no cotidiano já havia sugado por completo a sua mais saudável ambição. Não pretendia ganhar mais porque não tinha idéia de com o que gastar. Qualquer bem que ela desejasse ou precisasse adquirir caberia dentro das mesmas prestações através das quais ela havia comprado tudo o que, até então, possuía na vida.

Benedito, pelo contrário, sabia bem o que queria. Já havia tomado tantos calotes e dado tantos outros que não fazia mais conta do tempo ou dinheiro perdido. Passara a maior parte da vida apostando em negócios que deram errado, mas jamais desistira da idéia de ficar rico com o comércio. Já havia aberto lojas de tudo o quanto fosse mercadoria, nos mais variados pontos onde o comércio se aquecia. Tudo em vão. Sua vida se resumia em tentativas que eram alimentadas pelo fracasso. Talvez por isso a próxima tentativa fosse sempre mais repleta de esperança. Talvez pela sua inquietude e persistência no próximo negócio ou até mesmo pela sua dedicação e amor ao trabalho, se justificasse seu comportamento enquanto marido. Nunca quisera ter filhos. Nunca dera a Malvina a chance de contra argumentar nas discussões sobre o assunto, à tardinha, depois do trabalho.

Já se havia passado mais de nove anos de união e a relação do casal parecia estar bastante saturada. O tempo fez com os dois o que faz com todo mundo. Mostrou todos os lados, todos os ângulos do ser, sem cortes. Mostrou, de um para o outro, as cicatrizes feitas por eles mesmos, as esperanças mortas, escritas como um dístico na testa do outro. O tempo, esse estraga-prazeres, levou as poucas surpresas embora. Revelou que o que havia por descobrir já havia sido descoberto. Até mesmo o “por fazer”, que carregava um caráter de obrigação, perdeu o peso. Como uma parede de sala por pintar, que o passar dos anos acaba amarelando e o amarelo se torna uma cor de conformação, uma cor de “deixa como está que é melhor nem mexer”.

- Malvina, o que é que você tanto lê nesses panfletos, criatura?

- Não são panfletos, Benedito. São editais de concursos públicos federais. Acabaram de ser publicados. Por que é que você também não dá uma olhada? Pode ter coisa que te interessa aqui...

- A única coisa que me interessa é o comércio, você sabe.

- Sei sim. É por isso que sua vida continua assim. Estagnada.

- Estagnada não! Para se atuar no comércio é preciso ter tino pra coisa. Faro apurado e

acima de tudo sorte! ...o que tem me faltado ultimamente é a sorte, mas paciência! Nenhum grande empresário ficou rico da noite para o dia. Comigo não vai ser diferente.

- Nada na sua vida vai ser diferente, Benedito! Nunca! – disse Malvina já com os olhos cheios d’água e em elevado tom de voz...

- Você não consegue pensar em mais nada além de trabalho! (continuava) Já estamos juntos há quase dez anos e você se comportou por todos os dias durante esses dez anos da mesma maneira! Como alguém é capaz de ser tão frio? Nunca tivemos um filho! Nunca viajamos! Nunca nos relacionamos com outros casais! Nunca nos divertimos de verdade! Nunca aproveitamos a companhia um do outro como deveríamos!

- Malvina, o que é isso? Você nunca agiu assim. Você nunca se queixou.

- Pois agora eu estou me queixando. Eu estou botando pra fora tudo o que estava engasgado! Tudo o que tortura da rotina me fez assumir...

E ao passo que dava ênfase a seu sincero desabafo, Malvina se desmanchava em lágrimas e soluços. Era como se a necessidade de dizer algo verdadeiro, mesmo que o verdadeiro fosse doloroso, se fizesse maior do que a necessidade da estabilidade conjugal que sempre fora, (e essa era uma culpa conjunta) visivelmente, uma prioridade para os dois. O diálogo daquela noite deveria se tornar um divisor de águas na relação dos dois, um novo ponto de partida para uma relação mais proveitosa, um recomeço.

Benedito ficara realmente pasmo com a reação de Malvina ao passar dos dias. No fundo ele jamais esperaria que tal atitude viesse a acontecer tão cedo. Depois de algumas horas de absoluto silêncio, ao abrir a porta do quarto e sussurrar: “Malvina, meu amor, você já está melhor?”, o que ele ouviu foi um seco:

- Sim, apenas traga-me um comprimido para enxaqueca que amanhã preciso acordar disposta para o expediente que começa cedo.

3 comentários:

Alves disse...

Genial Raul!
Vc é o cara!!Réré...
Se tiver sua permissão quero quadrinizar isso, camarada...
Pode ser?

Raul disse...

Valeu cara! Fique a vontade pra quadrinizar a bagaça. Vai ser muito massa poder ver de verdade Benedito e Malvina.

Abs!

Anônimo disse...

Poxa... Vai ser LINDO o Benedito e a Malvina nos quadrinhos!!!!

Mil beijos pra você, Raul!!!! ;)