sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Pés molhados

Vejo entrando um a um - ofegantes como nadadores que atravessaram a braçadas a Bahia de Guanabara - os bravos que empunharam seus guarda-chuvas e saíram de casa nesse dia em que o céu resolveu desabar tão cedo. Na repartição em que trabalho, sombrinhas de todas as cores, modelos e tamanhos, colocadas lado a lado, descansam e parecem compor uma exposição de arte moderna. O chão, até o momento mais sólido e mais fixo do que o céu, vai sendo coberto pela água que escorre das sombrinhas, pela água que escorre do canto da parede, pela água que parece querer ocupar todo o espaço sobre o qual o esforço humano um dia ousou construir sua frágil edificação.

Me lembro da época em que eu era mais pedestre do que hoje. Sem carro, sem carteira de motorista. A tarefa elementar de sair de casa nos exigia uma dose extra de coragem. Não havia alternativa. Se o pretendente não fosse habilidoso o bastante para se arriscar com uma bicicleta, fazendo malabarismos com uma mão no guidão e a outra segurando o guarda-chuva, o jeito era respirar fundo e se lançar sobre o lamaçal em correnteza. Era preciso molhar os pés e o desagrado que isso causava fazia o mundo parecer muito pior do que ele realmente era. O incômodo aumentava ainda mais quando era preciso – após uma caminhada vã de passos milimétricos à procura do pedaço de chão mais raso – entrar em algum local público (como as repartições), pois os sapatos encharcados cuspiam água e grunhiam a cada passo que se dava.

Nos dias de pés molhados tudo era motivo para revolta. Xingava-se desde os fabricantes de guarda-chuva que, diga-se de passagem, na época eram melhores profissionais que os de hoje, até a prefeitura, que não havia elaborado um projeto de escoamento decente para impedir que se formassem enxurradas tão grandes nas ruas.

Quem se molhou se molhou. Sabe o que é ter que conviver com essa tendência ao azar que o período chuvoso sempre traz. Sabe o que é ter essa lembrança incômoda e perseguidora que sempre resistirá ao tempo e nos acompanhará.

Hoje, meus pés permanecem secos durante todo o dia. Posso me deslocar para onde eu quiser sem o risco de molhá-los. A rua onde moro continua a alagar toda vez que chove, mas o acesso a um automóvel me priva de ter que enfrentar enxurradas d’água que chegariam à altura dos meus joelhos.

Quando, novamente uma a uma, as pessoas levantam seus guarda-chuvas como espadas num confronto entre gladiadores, para saírem da repartição e ganharem novamente a rua alagada, sinto meu coração apertar. É a vontade de ir junto e encharcar os pés na esperança de esvaziar a consciência. A coragem que reside nos pequenos gestos engrandece quem os pratica, pois, a mera intenção de superação – independente do tamanho do desafio – obriga o indivíduo a olhar para si mesmo com menos pena e mais confiança.

Penso no dia de amanhã, nas nuvens indo embora, na lama secando sobre a calçada, no sol voltando a esquentar o dia e todas as pessoas que buscam ao sol o seu lugar. O cotidiano volta a ser dono de nossas vidas com toda a sua aridez e as possibilidades de felicidade, agora sim, parecem ser mais egoístas, como diz a canção.

Na nova manhã em que a vida parece recomeçar com uma dose maior de energia, procuro nuvens no azul absoluto. Procuro reaprender a passar por cima do que se coloca como pedra no caminho. Procuro de novo meu lugar à chuva.

2 comentários:

Guto Respi disse...

e chove que chove!
e eu, a pé, sem galocha..

e sempre o problema com o guarda-chuva que esqueço por onde passa meu passo.

Grande Abraço

Raul disse...

Os guarda-chuvas esquecidos mundo afora dariam uma bela história...